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A mostrar mensagens com a etiqueta aldeia

Trato principal

O Virgolino tinha ganho a sua reputação de razoável enxertador de bacelos com determinação e trabalho. Por isso, ele era solicitado pelos donos das vinhas para fazer enxertia. Não era o mais desenvolto na tarefa, mas tinha feito o seu lugar de pertencer a um grupo especializado em que o Anselmo e o Russo eram distintos. Nos fins do Inverno e começo da Primavera lá andava o Virgolino pelas vinhas de quem o rogava. Juntamente com o seu ajudante para chegar os enxertos, ia percorrendo valada a valada e,  ao encontrar um bacelo em condições, pousava o seu cesto de enxertia, pedia ao colega para limpar ao redor do bacelo, pegava na tesoura e cortava-o; com a sua navalha afiada, fazia depois o corte, afiava em cunha o garfo, enfiava-o na ranhura, atava com ráfia e uma pressão suave no garfo para ficar bem apertado; por fim, a sua prece de boa sorte. O ajudante aconchegasse com terra a sua obra. Mas o Virgolino era exigente. Como qualquer artista gostava de ser tratado com dis...

Meadas

A vida na aldeia rolava pacata e circular. Ia-se realizando a lavoura, rezando a Deus e aos santos, comentando as novidades. O tio Bino, já espigado na idade, destacava-se pela sua agudeza nos comentários, a sua falta de lógica nas posições assertivas sobre diversos temas e o seu alcance visual inigualável. Com a sua voz fina e barba extremamente rala, era alvo de comentários jocosos, mas respeitosos.  A sua resposta ao barbeiro quando se sentava na cadeira e este lhe perguntava:  - "Barba ou cabelo, sr Bino?" Respondia:  - "Tudo abaixo" Mas a sua falta de barba dava-lhe poderes fora do comum. -"Oh Sr. Bino isso pode lá ser? Veja bem o que está a dizer!!!" Dizia a Rentelha, mordendo o lábio e esboçando um sorriso descrente e algo sarcástico.   -"Não me desmintas!!! Não me desmintas!!" Reafirmava peremptório na sua voz esganiçada, apontando com o dedo indicador para as Meadas. "Eu vi muito claramente os coelho...

A padiola

Numa tarde já húmida e fria do final de Outono, Casimiro teve um pequeno deslize no ramo da oliveira a que subira para varejar e caíu desamparado no chão. Fosse alguma pinga a mais ou o ramo molhado onde se apoiara, o que é certo é que caiu. Pressentiu que a coisa era séria. Não se conseguia levantar. Após algumas trocas de informação e impropérios com os companheiros, próprios nas situações de azar, estes decidiram estendê-lo num tolde de pano que utilizavam para apanhar a azeitona e trazê-lo para a aldeia. O endireita observou-o rapidamente e ditou o seu veredito. Tem ossos partidos numa perna e nas costelas e possivelmente em mais algum sítio. O melhor era ir ao médico. Uns que sim outros que não, o que é certo é que o indireita mandou chamar os quatro rapazes da padiola para o levarem ao hospital. Contrafeito, lá foi estendido na padiola e coberto de mantas. Carregado pelos maqueiros, também pouco satisfeitos, lá se puseram a caminho dos 8 km, descendo a pique até ao rio e ...

Mulher Zelada

A boda decorreu como tinha de ser. Histórias, gargalhadas mais ou menos contidas, umas garfadas e uns copos, despiques, perguntas e respostas no ar. Exibiram-se os fatos, os vestidos, as gravatas e os sapatos. A discrição dos olhares, os acenos comedidos, as "saúdes" aos noivos foram entremeando os olhares soslaios, os sorrisos à medida e os gracejos educados. No declinar da festa, Virgolino e Suzana saíram radiantes da Quinta do Souto e foram à sua vida, sob os olhares de cumplicidade dos familiares e amigos. Estes ficaram mais um pouco a arrematar as conversas e a desatar os nós das encrencas que tinham saltado na mesa atafulhada de louça e restos de comida. No dia seguinte, os ritmos entraram novamente nos seus eixos. Vigiavam-se as vinhas, regavam-se as hortas, cuidavam-se os animais, erguia-se o pensamento ao criador ao toque das ave-marias e das trindades. Mas para Virgolino, o mundo saltara dos eixos. Logo cedo viram-no, nervoso e afoguea...

"Viva Sé"

O barulho de pedras a bater na lâmina da enxada galgava por toda a Aveleira. Campos de cultivo de hortícolas várias, abençoados por água abundante de poços espalhados pelos lameiros, estavam agora impacientes para receber as sementeiras. Rapazes, sem força para a enxada, rapavam com sacholas as ervas e o estrume espalhado no terreno para o corte aberto pelos homens e calcavam a rapadura com os pés. Depois, em perfeita sintonia, os homens viravam a terra com as suas enxadas, cobrindo as rapanças e rasgando novo valado na terra ainda húmida, para onde os rapazes voltavam a rapar. Acabada a batida das pedras, que se repetia várias vezes no dia e pelos diversos grupos dispersos que cavavam os vários lameiros, subia o som uníssono das vozes dos cavadores: - "VIVA SÉÉÉ...". Era a altura de fazer uma rodada da tarola ou garrafão para saciar a sede, acicatada pelo esforço do trabalho e o calor do sol de Maio. Era o tempo das Bessadas. O cuco já tinha voltado e dado sinal...

É o fim do mundo?

Que o mundo terá fim, ou seja, que ele sofrerá alterações profundas que irão varrer a espécie humana da face da terra, não é novidade para nós. Faltará saber como e quando. Seremos banidos do planeta lentamente ou sem tempo para pestanejar? Haverá uma lenta agonia ou nem daremos por nada? Será numa sexta feira 13 ou ao longo dum taciturno mês de Maio? Chovia e trovejava se Deus a dava. "Mãe, isto é o fim do mundo?" tremelicava o Zezinho agarrado ao xaile da mãe. Esta protegia o seu novo rebento que transportava ao colo enquanto o Zezinho tentava a todo o custo acompanhar o seu passo rápido, a caminho de casa, fugindo à trovoada implacável e  destemperada que se abatera repentinamente sobre a aldeia indefesa. Zezinho estava avisado que viria o fim do mundo com tempestades e trovões do outro mundo e aqueles pareciam mesmo os que guardava na sua fantasia. No meio do passo apressado, do barulho dos trovões do vento e da chuva, Zezinho recebe a resposta tranquilizadora da s...

A Russa

A vida rural exige uma comunhão estreita do homem com a terra e os animais. Foram estes que guindaram em parte a nossa espécie àquilo que hoje somos. Não vale a pena repetir o óbvio, mas, por vezes, esquecemos o quanto devemos materialmente e espiritualmente aos seres que nos rodeiam. Eles alimentam-nos, transportam-nos, dedicam-nos momentos inesquecíveis a troco de quase nada. A Russa era a companhia inseparável do Tavares. Sempre a farejar os seus bolsos do casaco, que usava meio vestido sobre o seu ombro esquerdo e de onde saiam, de vez em quando, umas côdeas de pão de milho. Lá ia, atrás do dono ou transportando-o  no dorso, para todo o lado. Nas quintas feiras rumavam à feira da cidade, percorrendo os 9 Km descendo e subindo encostas. No seu passo sempre igual, chegavam pelo meio da manhã. A Russa era entregue no lugar da Ponte, à entrada da cidade, ao seu amigo que, além da taberna para saciar a fome e sede dos feirantes, também tinha uma loja para acomodar os animais. ...

Católica

Os mordomos da festa do padroeiro de Frielas queriam que a procissão desse ano, tão rico em santidade pela vinda do papa a Fátima, ficasse gravada na história da aldeia. Mas faltava uma peça essencial, a imagem do Senhor dos Paços. Já os seus antepassados tinham tido o mesmo problema,  legando essa catastrófica herança de não poderem juntar à Senhora das Dores o seu Filho e Senhor dos Passos. Claro que esta situação corroía-os de inveja, que ia crescendo anualmente, da aldeia vizinha de Pereiras. já que eles dispunham, num dos altares laterais da sua igreja, uma majestosa imagem do dito Senhor. Mas nesse ano não resistiram à tentação. Discussão acesa entre os mordomos acaba por decidir que, não havendo outra solução, se iria cometer um pequeno "desvio" rumo à santidade, tentando "deslocar" temporariamente o Senhor dos Passos de Pereiras, já que o pedido de empréstimo amigável seria improvável e um rebaixamento a que não se queriam sujeitar. Pela noite, na véspe...

Como te Compreendo Torga!

Há algo de especialmente fascinante em Miguel Torga. O vocabulário rico, cerrado e pitoresco; as expressões do quotidiano das pessoas das terras do Alto-Douro que são as suas raízes; as vivências algo atribuladas como emigrante, médico, poeta, escritor, preso político, viajante pela Europa, África e América, Ásia. O testemunho da sua experiência de vida, os seus pensamentos acutilantes, as suas ilusões, sofrimentos, mas sobretudo as suas personagens vivas em palavras a entrar-nos pelos olhos dentro com uma violência e crueza sem par. E a sua verticalidade de princípios e a sua facilidade em os reconhecer e aplicar na vida e nas personagens deverá ser uma inveja para todos. É isto que eu admiro; partilho raízes graníticas durienses, segmentos do percurso de vida, atitudes com os semelhantes, rudezas e fragilidades; falta-me a coragem para a aventura, naturalmente o seu imenso talento literário e profissional e, obviamente, a sua ímpar clareza e lucidez.   A Criação do Mu...

Amália

Os anos já pesavam nas pernas do avô Justiniano.  Por isso, desistira de subir a pé, por carreiros irregulares, a encosta íngreme para ir ao Lagedo. Preferia ir a cavalo na sua burra e fazer o caminho dando a volta pela povoação. Além disso, podia parar na principal venda da freguesia e ficar a par das informações importantes da aldeia e discutir um pouco do que lhe chegava pelo jornal da política nacional. Era a época dos que eram da "situação", dos que a execravam figadalmente e dos que simplesmente a desprezavam ou ignoravam. No Lagedo, já pela tardinha, abria ao tanque e dava de beber às cebolas, tomates, feijão e demais plantas mais sequiosas, espalhadas por alguns calços colados à encosta virados para as Meadas. Já pelo anoitecer regressava pausadamente a casa, pois a sua burra também aproveitava o tempo no sobreiral adjacente onde comia as iguarias de que gostava, o bracejo, as bolotas e as diversas ervas rasteiras e tenras que selecionava com cuidado. ...

O homem alfineteiro

A aldeia começou em ligeira ebulição. A notícia começou a deambular pelas ruelas e caminhos térreos. Estava para vir o cinema, ou melhor, umas imagens que se moviam numa parede lançadas de uma pequena e intensa luz a uns metros de distância. Os mais velhos conjeturavam que eram coisas que apareciam quando está para vir o fim do mundo. Os de meia idade sarcasticamente admitiam que estavam a avançar para o progresso. Os rapazes saltavam de contentes porque sempre queriam ver os bonecos saltando ou correndo na parede e, com sorte, talvez alguns caíssem e os pudessem apanhar. O dia, no verão, chegou. Foi anunciado previamente nos avisos finais da missa dominical, com a recomendação de trazerem os respetivos assentos para o adro da igreja bem depois do por do sol. O adro estava à pinha. Os mais velhos tomavam os seus assentos enquanto mantinham conversa sobre o andar dos vinhedos e das suas maleitas crónicas. Os de meia idade trocavam conversas e olhares, distendiam o corpo dorido das...

Maldita Enxada

Feita a escola primária, os irmãos Jeremias e Alberto trabalhavam no campo, podando, escavando e redrando com a enxada, acartando uvas em cestos vindimos, varejando, colhendo a azeitona. Enfim, um ciclo de tarefas exigidos pelos vinhedos, olivais e matas circundantes à pequena aldeia onde foram criados. Ciclo esse, regulado pelas estações do ano e o saber acumulado pela experiência e transmitido de pais para filhos. Jeremias e Alberto trabalhavam para um reduzido número de proprietários, já que de seu apenas tinham a casa modestamente mobilada de que as enxadas faziam parte. Pelo seus vinte e poucos anos, andavam a rotear com mais alguns homens para os lados das Antas. Aos pares, um com um ferro afiado aluía a terra e o outro com enxada ou pá virava a terra solta de modo criar uma vala de um metro de profundidade, tapando a vala anteriormente aberta, de modo a trazer à superfície a terra nova e mais produtiva e remetendo para a profundidade a já cansada. O dia de trabalho estav...