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Mensagens

A mostrar mensagens de outubro, 2018

Vitorinos, Saramagos e Santos

Escritores e leitores escrevem e ou leem romances, ensaios, teses dos mais variados temas, desde a vida da pulga nos pelos do cão ao comportamento algo atípico do planeta HD 131399Ab, devido aos três sóis que tem de gravitar. De forma mais ou menos direta ou escondida, expõem as suas vidas (ou as dos seus personagens e objetos) escarrapachadas e sofridas ou venturosas. Geralmente, misturam a realidade e a ficção, atirando substantivos, adjetivos e verbos em catadupa, rodeando os personagens das virtudes e defeitos que todos partilhamos. Por exemplo,  o Santos escreve e lê notícias com aquela entoação teatral de quem vive dentro dos acontecimentos, Depois, nos livros, envolve esses ou outros factos ditos reiais numa história inventada. O Vitorino no seu sotaque, encantava-nos com pequenas histórias recheadas de personagens e acontecimentos improváveis, alguns reais outros, possivelmente inventados. Saramago, com frieza e lucidez, recheava as suas histórias de factos reias e imag...

Trato principal

O Virgolino tinha ganho a sua reputação de razoável enxertador de bacelos com determinação e trabalho. Por isso, ele era solicitado pelos donos das vinhas para fazer enxertia. Não era o mais desenvolto na tarefa, mas tinha feito o seu lugar de pertencer a um grupo especializado em que o Anselmo e o Russo eram distintos. Nos fins do Inverno e começo da Primavera lá andava o Virgolino pelas vinhas de quem o rogava. Juntamente com o seu ajudante para chegar os enxertos, ia percorrendo valada a valada e,  ao encontrar um bacelo em condições, pousava o seu cesto de enxertia, pedia ao colega para limpar ao redor do bacelo, pegava na tesoura e cortava-o; com a sua navalha afiada, fazia depois o corte, afiava em cunha o garfo, enfiava-o na ranhura, atava com ráfia e uma pressão suave no garfo para ficar bem apertado; por fim, a sua prece de boa sorte. O ajudante aconchegasse com terra a sua obra. Mas o Virgolino era exigente. Como qualquer artista gostava de ser tratado com dis...

Meadas

A vida na aldeia rolava pacata e circular. Ia-se realizando a lavoura, rezando a Deus e aos santos, comentando as novidades. O tio Bino, já espigado na idade, destacava-se pela sua agudeza nos comentários, a sua falta de lógica nas posições assertivas sobre diversos temas e o seu alcance visual inigualável. Com a sua voz fina e barba extremamente rala, era alvo de comentários jocosos, mas respeitosos.  A sua resposta ao barbeiro quando se sentava na cadeira e este lhe perguntava:  - "Barba ou cabelo, sr Bino?" Respondia:  - "Tudo abaixo" Mas a sua falta de barba dava-lhe poderes fora do comum. -"Oh Sr. Bino isso pode lá ser? Veja bem o que está a dizer!!!" Dizia a Rentelha, mordendo o lábio e esboçando um sorriso descrente e algo sarcástico.   -"Não me desmintas!!! Não me desmintas!!" Reafirmava peremptório na sua voz esganiçada, apontando com o dedo indicador para as Meadas. "Eu vi muito claramente os coelho...

Luzia

Ei-los entados à mesa dum qualquer quiosque de uma bomba de combustíveis junto à estrada que foge da cidade, saboreando os habituais 3 ou 4 golos de café numa tarde solarenga e triste de Dezembro. Poucas mesas e cadeiras dispersas por um pequeno espaço coberto por um moderno toldo de plástico acinzentado. Umas mesas ocupadas com transeuntes ou residentes locais, outras à espera. A cidadania obrigaria a que os clientes, depois de adquirirem o café no quiosque e o saborearem nesta sala parcialmente condicionada pelo sol, vento e chuva, entregassem as respetivas chávenas, pires e colheres no balcão onde as recberam. Mas por vezes a preguiça ou a pressa abandonam na mesa as beatas e a loiça. Um ou outro empregado reparam estes abandonos. Mas lá aparece também, com frequência, o bem disposto e pachorrento empregado mor, fundador e patrão moral da bomba e demais serviços anexos. Sempre coloquial e palavreador recorda ou improvisa histórias dos seus aparentemente bem passados anos...

Valor de posição

Noite cerrada de inverno. Chuva tocada a vento sul, batendo nas vidraças das janelas, viradas a sudoeste, duma casa pregada na encosta em frente ao Marão. A água escorre a custo pela janela. Alguma dela entra no quarto pelas gretas abertas no betume que fixa os vidros aos caixilhos, a necessitarem de "reforma". Num quarto exíguo, uma criança, sentada na enxerga cheia de palha de centeio e assente no chão, percorre o seu livro escolar de aritmética nas páginas para aprender a contar e ao sistema de numeração decimal. Não sabia, naquela altura, que existiam outros sistemas de numeração. Tudo coisas criadas ou imaginadas por homens longínquos, talvez na Ásia Hindú, onde hoje é o Paquistão. Os árabes, perceberam a sua importância aprenderam-nas, melhoraram-nas e trouxeram-nas para a Europa. Duma candeia de azeite irradia uma luz trémula. O nosso aluno da primária, lê e relê aqueles gatafunhos numéricos, misturados com mais outros gatafunhos, as letras. Percorre do um...

Semnome

De manhã cedo, pai e mãe saem para o trabalho deixando em casa os seus dois filhos. O mais novo alimentado a biberão; o mais velhinho já roendo côdeas de pão e bebendo malgas de caldo. Nasceram na década de sessenta, no meio de um turbilhão de privações. O sustento das famílias mais pobres fazia-se com muito trabalho e magras refeições. A entreajuda frente à adversidade era mais forte que nunca, mas a fome apertava e o pouco que havia, tinha de ser meticulosamente repartido. O Laurido depois da sua malga de caldo, dava o biberão ao irmão, conforme os avisos da sua mãe. Porém, entre os avisos maternos e os avisos da sua barriga, acabava por ceder à tentação e, além da sua ração, ia surripiando porções do biberão do seu irmão. A sua consciência foi acomodando o seu incipiente sentimento de culpa. As desconfianças da sua mãe, que via o seu mais recente rebento sem medrar e definhar, gradualmente acabaram por descobrir o que estava a suceder. As repreensões foram implacáveis e a verg...

O mundo em que vivemos

Dificilmente encontramos palavras para descrever e compreender o mundo em que vivemos. Deus terá colocado esta bola no meio do infinito. dotando-a de movimentos, muita água, terra e rochas, seres vivos pequenos, médios e grandes.Terá dado um primeiro sopro e daí em diante as coisas foram-se encadeando, divergindo e convergindo, acelerando e travando. desaparecendo e reaparecendo mais adiante. Espalhada pelos vales, montes e colinas, resistindo ao frio. calor, dominando o meio que o rodeia aí está uma das espécies de seres vivos que, como uma praga, coopera e compete, esventra e remenda a casa que o sustém.  "Abre a janela e deixa-me entrar! Está aqui um calor de rachar e eu já não aguento mais!" gritava uma triste melga agarrada a custo ao vidro exterior da janela da casa do Góis. Este, impávido e sem contemplação, fazia que não ouvia e apreciava os pardais irrequietos tasquinhando os figos lampos acabados de amadurecer. Olhou para o seu interior e remoeu o seu...

Singularidade e Regularidade

Praticamente em quase tudo há sempre algo de singular e algo de regular. Singularidades e regularidades são, aliás, uma das traves mestras da sociologia. Há pessoas regulares e especiais. Há coisas vulgares e excecionais. Há lugares banais e originais e por aí fora. Mas por que é que as coisas são assim? Porque as vemos, ouvimos e sentimos como tal. Afinal, representamos ou temos na nossa mente aquilo que percebemos ou aquilo que sabemos? As duas ou nenhuma delas... quem sabe! A Srª. Ajuda, o Sr. Moedas e o Sr. Regime estão sentados à mesa do café. A Srª. Ajuda anda num rodopio porque é constantemente solicitada para fazer o que melhor sabe, tapar as falhas da singularidade. É preciso acorrer a uma necessidade especial aí vai a ela. É preciso levar o paralítico às compras, o velho à missa, o cego ao cinema, o doente à consulta, o gazeado ao hospital de campanha, a sopa ao sem abrigo... E a lista não pára! Às vezes parece-lhe que ja anda a exagerar nas ajudas e que os seus client...

Memória

Não é vulgar um carpinteiro chamar-se Defry. Mas é mesmo esse o seu nome. Como qualquer profissional, amador da sua arte, acaricia as suas ferramentas com emoção e delicadeza. Usa-as com suavidade e destreza. Arruma-as e aconchega-as nos seus aposentos donde saem pela mão do seu dono, para fazer o seu trabalho. É um prazer para um observador paciente, ver de um monte de tábuas surgir, lentamente, peças polidas e precisas, encaixes sólidos, deslizes suaves e no fim, uma obra acabada, não assinada, mas em que os olhares retilíneos e as mãos meticulosas do mestre deixaram a sua marca. O Defry pode lembrar o passado. O cheiro adocicado da madeira cortada mistura-se com o ruído ritmado da serra a deslizar pelas suas nervuras. O variado visual das texturas e cores reflete uma luz mortiça, entrada a custo pelo pequeno janelo ao fundo da pequena, mas funcional, oficina. Mas o Defry, orgulhoso da sua arte, que em várias décadas se tem vindo aprimorando e atualizando num pequeno es...

A padiola

Numa tarde já húmida e fria do final de Outono, Casimiro teve um pequeno deslize no ramo da oliveira a que subira para varejar e caíu desamparado no chão. Fosse alguma pinga a mais ou o ramo molhado onde se apoiara, o que é certo é que caiu. Pressentiu que a coisa era séria. Não se conseguia levantar. Após algumas trocas de informação e impropérios com os companheiros, próprios nas situações de azar, estes decidiram estendê-lo num tolde de pano que utilizavam para apanhar a azeitona e trazê-lo para a aldeia. O endireita observou-o rapidamente e ditou o seu veredito. Tem ossos partidos numa perna e nas costelas e possivelmente em mais algum sítio. O melhor era ir ao médico. Uns que sim outros que não, o que é certo é que o indireita mandou chamar os quatro rapazes da padiola para o levarem ao hospital. Contrafeito, lá foi estendido na padiola e coberto de mantas. Carregado pelos maqueiros, também pouco satisfeitos, lá se puseram a caminho dos 8 km, descendo a pique até ao rio e ...